UM
PRESENTE EM 2015
“ A
verdade é um castelo que construímos para satisfazer nossas
vontades”
Paul
Veyne
De quando eu tinha 15 anos de idade e estudava
na Escola Estadual Isabel Gondim, no bairro da Rocas, lembro-me de
uma conversa que tive com minha professora de redação, que foi mais
ou menos assim: “Ei, professora, o que é uma resenha? Já que a
senhora está falando que na aula de hoje teremos que fazer uma.”
Ela, antes de responder, disse: “Já sei que você não veio na
última aula”. “Claro que não, tava na praia”. “Você não
se cansa da praia?” “Claro que não, mas canso com facilidade da
escola.” Se soubesse mesmo as consequências disso, ou nunca teria
faltado, ou jamais teria voltado lá na escola.
Mas, a professora, mesmo sabendo que esse que
agora escreve tinha faltado a aula, respondeu assim à minha
pergunta: “Uma resenha é um texto escrito de forma que nele
possamos apresentar uma crítica ou pensamento que um autor(a)
apresentou em um livro, ou sobre um filme, ou uma peça de teatro.
Enfim, é um recurso pelo qual podemos apresentar para outras pessoas
nosso ponto de vista sobre determinado tema (assunto). De pronto, eu
disse: “Ah! Basta falar mal de uma dessas obras e pronto?”. A
professora, que já estava perdendo a paciência, mas que mantinha a
elegância que sempre foi sua característica, disse: “Se você
viesse mais às aulas e deixasse um pouco a praia, certamente saberia
que críticas podem ser tanto construtivas, ou seja, podem levantar
aspectos bons, como podem ser destrutivas, apontando aspectos ruins.
Isso vai da forma como você se posicionará sobre a obra que irá
resenhar”.
Quase trinta anos depois, estou me incumbindo
de escrever uma resenha e mensurando o que perdi naquelas aulas. Com
um pouco de medo das mil e uma teorias sobre a língua portuguesa e
da mãe do meu filho, que é uma professora de português das
melhores e que, se eu vacilar no uso das palavras, arranca meu
pescoço.
Deixando o medo de lado, hoje apresento a obra
“O espetáculo do mundo”, novela de Angelo Girotto.
Bem, se você quer saber o que é uma novela e
pensa que essas linhas irão lhe explicar, logo lhe advirto, não é
esse o meu objetivo, mas sim, explicar como a ponte aérea
Curitiba-Natal nos presenteou um personagem, Antônio Block e seus
muitos dilemas, como Angelo Girotto, esse fazedor de textos, deu para
o personagem, como cenário de atuação, o mundo em toda sua
espetacularidade.
Lembre-se que uma leitura é, ou deveria ser,
uma interpretação pessoal e que os pontos que serão abordados aqui
sobre o livro “O espetáculo do mundo, são escolhas que fiz. Você
poderá fazer outras, mas aqui estarei apresentando que, o que o
autor nos dá, torna sua obra um presente, o que seu personagem nos
proporcionará, ressignificará nossas vidas, tirará nossos medos e,
quem sabe, até nos acrescentará outros.
Block, bem que poderia ser uma pessoa como as
outras, poderia ter crescido, aceitado sua existência sem
questioná-la. Poderia até mesmo só se casar, ter filho, um
contracheque, conta no banco e contas para pagar em todos os seus
vencimentos. Porém, que graça teria isso? Seria Angelo Girotto tão
ingênuo a ponto de nos deixar de herança alguém comum? Claro que
não.
De Antônio Block, só sabemos um pouco da
infância, já que no livro ela só é acionada, permitindo a quem o
ler, em poucas passagens, visualizar seu percurso até a
adolescência, em Curitiba. Ele um dia foi criança, morou no Mato
Grosso do Sul, brincou com o perigo no momento que quase pegou numa
cobra, mas a mãe o impediu. Nessa mesma infância, o pai é
apresentado como um sujeito bruto, que no lugar de carinho preferiu
nunca deixar faltar comida para o filho, deduzo. Block, teve avós,
teve primos, primas, mas esses personagens surgem na narrativa apenas
para alertar que seu nascimento não foi divino. Mas, garanto que
quando você ler o livro “O espetáculo do mundo”, vai achá-lo
divino. Se você for do tipo religioso, é bem provável que perceba
ali um “mito” fundante para uma comunidade exotérica, que você
encontre sua própria “Gênesis”, que você queira ser o Antônio
Block.
O personagem bem poderia ser homem, ou mulher,
poderia ser a menina que hoje em Recife-PE, trabalha sério com
pilates. Poderia ser a outra, que chutou o mestrado em letras, que
têm mil empregos, que faz direito na UERN. Poderia ser o cara que
nos anos 1994, brincava de ser aprovado em vestibulares, que passou
por engenharia civil, arquitetura, que foi para Brasília com seu
amor adolescente e que hoje está, dizem, terminando direito na UERN.
Block, também poderia ser o cara certinho, vegano, que aceitou uma
frase do BBB: “Quanto mais conheço o ser humano, mais adoro meus
cachorros”. Cara esse que é técnico em segurança de uma empresa
de petróleo, ou ainda, o que já foi professor e hoje é advogado, e
que quando lê um livro, sempre deixa sua marca. Poderia ser
policial, professor, das letras e assessor parlamentar. Mas não.
Block é tudo isso e muito mais. Vamos a um dos seus pensamentos,
genialmente descrito no livro, que é assim:
“ A morte chegará para todos, pensou, e não
há nenhuma diferença se ela chegar hoje ou amanhã. Um dia, tudo o
que fomos, nossas memórias e pulsões, nossas relações e
trajetórias, tudo estará acabado, esquecido e definitivamente
disperso no tempo, o que quer que o tempo seja, ilusão ou movimento.
As estrelas morrerão e o Universo chegará ao Fim, Block.”
(GIROTTO, 2015, p.18).
Esse pensamento do Block e suas indagações a
respeito de sua finitude, sobre o que é o tempo, feitas de forma
retórica, não é bem parecido com as indagações que a humanidade
e os filósofos fazem a milênios sobre o De onde? Para onde? Ou para
quê? Até poderíamos aceitar as coisas assim, mas não, pois o
personagem dá a sua própria resposta. Ele diz que o fim é
dispersão, que mesmo a morte individual é inevitável, é também a
morte de tudo. É a morte do Universo e de tudo nele contido.
E aprofundemos ainda mais nossa reflexão a
respeito desse trecho do pensamento do Block, mas recorrendo a Carl
Gustav Jung, no livro “ Memórias, sonhos, reflexões”, no qual o
autor assim vai se posicionar:
“Infelizmente, o
lado mítico do homem encontra-se hoje frequentemente frustrado. O
homem não sabe mais fabular. E com isso perde muito, pois é
importante e salutar falar sobre aquilo que o espírito não pode
apreender, tal como uma boa história de fantasmas, ao pé de uma
lareira e fumando cachimbo. O que significa “na realidade” os
mitos ou as histórias de uma sobrevida, ou qual a realidade aí se
dissimula, certamente não sabemos. Não podemos estabelecer se têm
qualquer justificativa além do seu indubitável valor de projeção
antropomórfica. É preciso claramente consentir que não existe
nenhuma possibilidade de chegar-se a uma certeza nesse assuntos que
ultrapassam nossa compreensão (JUNG, p. 29-30).”
O Block, corrobora com Jung, pois ele entende
essa frustração em que frequentemente o lado mítico do homem se
encontra imerso e que Jung denunciou magistralmente. Porém, ele
busca se distanciar dela em seu pensamento e dá sua resposta para a
vida póstuma. No caso do nosso personagem essa seria a dispersão.
Em muitas das passagens do livro “O espetáculo do mundo”,
Antônio Block conversa com seus amigos sobre toda essa sua busca de
um sentido para a vida e suas formulações sobre morte-vida e seus
significados sempre estão presentes. Eles discutem sobre política,
religião, terrorismo, Universo, subverso e as muitas incertezas
teóricas e metodológicas que essas questão trazem em si. Conversas
que eles embasam discutindo desde “O princípio da incerteza”, de
Heiseberg, ao Gato de Schródinger e Einstein, entre outros grandes
pensadores e cientistas da humanidade. Isso tudo buscando uma
explicação sobre a vida, seu significado e valia. E sobre como
devemos atuar no espetáculo do mundo, já que somos espectadores e
personagens atuantes ao mesmo tempo. E mesmo que todas essas
discussões não sejam suficientes para responder as perguntas do no
jovem Antônio Block, professor de biotologia, em cursinho Pré-vestibular, em Curitiba, mas que depois vem fazer
concurso público, em Natal, para poder, quem sabe, se realizar
pagando contas e, com essas pagas, ter uma vida feliz e
significativa. Isso você poderá observar no livro e comprovar se o
que escrevo sobre Antônio Block é verdadeiro ou não.
Mas, deixemos a biografia do Block para trás
e voltamos a nos ater em apresentar o livro “O espetáculo do
Mundo”. Angelo Girotto, como um bom fazedor de textos que é, não
deixaria linhas soltas, não deixaria que a gente se perdesse, nem
muito menos que não pudéssemos, mesmo que de forma superficial,
confirmar a genialidade do Antônio Block nas muitas maneiras que ele
responde como deve ser a vida nossa de cada dia.
Já que sobre a morte nossa de todo dia ela
também já falou, vamos a outra passagem do livro: “As pessoas têm
seu próprio caminho a percorrer, cada um, apenas cada um é capaz de
resolver seus problemas e apenas os seus: Isto, com e sem variações”
(GIROTTO, p.47). O que há de genial nisso? Já que é obvio que cada
um e só cada um é que pode resolver seus próprios problemas. No
meu entender, é que esperamos que um personagem nos diga isso. Esse
personagem pode receber variados nomes, em variadas culturas, pode
ser um deus nas religião, pode ser um grande estadista na política,
pode ser um grande analista na psicanálise ou algo assim. Desde que
nos diga com uma autoridade de fora. E o Block é essa autoridade.
Campo bem perigoso e movediço esse que me
coloquei no último parágrafo, já que pus política e religião em
linhas tão próximas e ainda afirmei que precisamos de algo que vem
de fora para apontar que caminhos devemos seguir. Bem, mas é assim
que o Block vai estar durante todo o seu percurso, fazendo do início
ao fim do “Espetáculo do Mundo”, a atuação do personagem
sempre bem dada em cada ação. Vai carregando ele em busca dessa
autoridade que já possui e da qual Angelo Giroto se utilizará para
o desfecho de sua novela.
O Presente em 2015 quem nos dá é Angelo
Girotto, com seu livro “O espetáculo do mundo”. Sei que você
está aí se perguntando: “só poucos trechos e o Cláudio já fez
tantos comentários a respeito do livro? ” Respondo: ele está nas
livrarias, sugiro que compre e leve-o para casa e leia-o do início
ao fim. Comece pelas orelhas – busque entender dali quem é o
Angelo, quem é o ilustrador do livro. Deguste cada ilustração,
busque as surpresas do desenrolar da história, tente fazer a ponte
entre a dedicatória feita pelo autor e o personagem e outros que não
estão no livro, mas que aqui eu os coloquei. E por fim, você
compreenderá porque o mundo é um espetáculo e você é o único
capaz de escrever o roteiro para sua atuação nele, o mundo. Então
perceberás porque o livro é um presente.
E por último, sorria, se também conseguir
compreender a ligação entre o que diz Henri Bergson, nesse trecho
do seu ensaio sobre o significado do cômico: feito no livro O Riso:
“Chamamos a atenção para isto: não há comicidade fora do que é
propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa,
sublime, insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de
um animal, mas porque teremos surpreendido nele uma atitude de homem
ou certa expressão humana. Riremos de um chapéu, mas no caso, o
cômico não será um pedaço de feltro ou palha, senão a forma que
alguém lhe deu, o molde da fantasia humana que ele assumiu. Como é
possível que fato tão importante, em sua simplicidade, não tenha
merecido atenção mais acurada dos filósofos? Já se definiu o
homem como “um animal que ri”. Poderia também ter sido definido
como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou
algum objeto inanimado, seria por semelhança com o homem, pela
característica impressa pelo homem ou pelo uso que o homem dele
faz.” (BERGSON, p.7)
Obrigado e atue firme sobre sua própria vida,
construa todos os seus sonhos, busque agir com ética, lembre-se que
essa só é possível se você exercitar sua liberdade. Obrigado ao
fazedor de texto, por ter escrito “O espetáculo do mundo”. E
lembre-se do que Paul Veyne disse: “A verdade é um castelo que
construímos para satisfazer nossas vontades”. Então, não temos
para quê impor as nossas verdades a ninguém, pois assim, nos
ensinara Antônio Block, mesmo sem saber, a reinterpretar Paul Veyne.
Claudio Wagner
Poeta, professor historiador, Cientista das
Religiões, 1º Secretário da SPVA/RN e autor do livro Entre
a Sombra da Razão e a Razão da Sombra.
Referencia:
BERGSON, Henri, O
Riso, ensaios sobre a
significação do cômico. Rio de Janeiro, Zahar Editores S/A, 1983.
GIROTTO,
Angelo, O
espetáculo do mundo.
Natal-RN, CJA Edições, 2015.
JUNG,
Carl Gustav, Memórias,
sonhos, reflexões.
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986.
VEYNE, P.
Humanistas:
romanos e não romanos.
In: GIARDINA, A.(Org.) O homem romano, Lisboa : Presença, 1991.
Extraído de: BELTRÃO, Claudia e DEVIDSON, Jorge, História Antiga
v.2, Rio de Janeiro: Fundação CECIERI, 2010.
SOUZA,
Roberto Acízelo de. Teoria
da literatura.
São Paulo: Ática, 1995.
Gostei da profundidade da pesquisa na qual sustenta a resenha. Muito bem articulada do início à sua excelente conclusão. Parabéns e obrigada.
ResponderExcluirMuito obrigado!! Palavras assim são um incentivo a escreta
Excluir