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Brinquedoteca Itinerante e Popular

sábado, 23 de julho de 2011

DESCOBRINDO O LUGAR A BONECA DE PANO NA CULTURA LÚDICA BRASILEIRA 2ª Parte




Segunda Parte


2. As traduções assumidas pela boneca ao longo da história

A investigação sobre a boneca de pano nos leva a realizar uma busca aos seus primórdios em suas possíveis traduções nas diversas culturas para posteriormente aportar no Brasil e assumir os contornos atuais. Nesse sentido, a tradução, importante conceito da Teoria Ator-Rede permite entender as diversas modificações sofridas pela boneca. Além dos deslocamentos geográficos e lingüísticos próprios ao movimento da tradução, esta pode ocorrer ainda em duas perspectivas, sendo uma série paradigmática e outra série sintagmática (LAW, 1997; QUEIROZ e MELO, 2007).
A perspectiva paradigmática permite verificar as modificações ocorridas nas formas e modelos e nos materiais utilizados para confecção do objeto. No caso da boneca, são inúmeros os modelos que ela assumiu ao longo de sua existência iniciando com os protótipos em argila e terracota, passando pelos confeccionados em tecido, em palha, em bucha vegetal até com materiais altamente industrializados. Mefano (2005) comenta que a produção de bonecas no Brasil teve seu inicio na produção artesanal, com utilização de tecidos, muitas vezes das sobras desses da confecção de roupas. Seguindo o traçado desses artefatos, a autora levantou informações que levam a verificar que a característica de manufatura de bonecas passou a ser modificada quando a pequena empresa que deu origem a atual fábrica de brinquedos Estrela passou a produzir este brinquedo, ainda que de maneira rudimentar, mas já utilizando recursos industriais as tradicionais bonecas de pano. A partir desse momento, a evolução de técnicas e inserção de novos materiais, como a introdução de polímeros de plástico e borracha, surgimento de uma técnica chamada de composição para confecção de rostos das bonecas foi só o ponto inicial da evolução e disseminação desses artefatos.
Os materiais de fabricação dos brinquedos refletem a diversidade encontrada na região de produção do mesmo. Manson (2002) comenta que os gregos fabricavam bonecas de terracota, enquanto os protótipos romanos eram confeccionados especialmente em osso, madeira ou marfim. Os modelos gregos de bonecas eram menos variados, talvez por serem produzidos com limitado material, enquanto as bonecas gregas possuíam modelos mais variados e, comumente, eram exportadas para as crianças romanas.
A série sintagmática permite analisar as funções que um objeto pode assumir dependendo da maneira como o usuário o manipula, essa dimensão guarda em si estratégias, regras, desafios etc. No caso da boneca sua principal função sempre foi a de servir aos movimentos lúdicos que servem à experimentação de papéis sociais, muito comumente o das meninas imitando a situação de maternagem. No entanto, ao percorrer seu histórico, a vemos figurar como informante de mudanças na moda, nos penteados e em maquiagens em um período longo da história européia. Primitivamente, encontramos a boneca como instrumento religioso quando ela serviu como suporte para cerimoniais fúnebres (ARIÈS, 1981). Kishimoto (2002) comenta que algumas crianças indígenas brasileiras utilizam essa tradução de boneca como ídolo de adoração, pois ela evidencia as divindades, assim como encontramos a boneca servindo aos mesmos propósitos na Antiguidade (culto a divindades, elogio aos guerreiros, enterrados junto às crianças em túmulos). A boneca também foi amplamente utilizada para os rituais de fertilidade e casamento na Antiguidade. As jovens ofertavam as bonecas às divindades nos templos nos quais realizavam pedidos não só de fertilidade, mas também de casamento e amor (MANSON, 2002). As bonecas são para algumas comunidades indígenas símbolos utilizados durante a gravidez, período em que as mulheres amarram uma boneca junto à cintura (AMADO, 2007).
Assim, percebemos que a boneca surgiu como um artefato tão antigo quanto à própria civilização. No Museu do Louvre há um protótipo desse objeto produzido em terracota (material resultante do cozimento da argila) datado do ano 440 a.C (http://www.artmuseum.gov.mo/photodetail.asp?productkey=2008041201074&lc=2).
Interessante observar a existência desse fato em um período em que o conceito de infância não era conhecido. Manson (2002) realizou uma busca em obras da Antiguidade onde encontrou indícios de que a infância não era reconhecida sob o mesmo ponto de vista observado nas obras da Idade Média (ARIÈS, 1981). Os textos indicam que os pequenos brincavam com objetos em miniatura e com estatuetas que são os protótipos de bonecas de hoje, enquanto os mesmos objetos foram duramente criticados por filósofos e educadores anteriores a Revolução Francesa.
A boneca atuou como ator importante nos ritos cerimoniais da Antiguidade, já que são vastos os registros desse objeto em textos romanos, gregos e também em informações de escavações arqueológicas que encontraram bonecas, especialmente em túmulos, confeccionadas com materiais diversos. Essas bonecas encontradas especialmente nas escavações da bacia mediterrânea eram feitas em terracota, osso, marfim e madeira, alguns dotados de articulações nos joelhos. A configuração dessas bonecas, portanto, em nada se parece com as bonecas atuais, pois eram protótipos fabricados que representavam as divindades idolatradas por romanos e gregos. Uma criança contemporânea não teria facilidade em reconhecer esses bonecos como lúdicos, mas não resta dúvida de que tais objetos originaram as traduções dos brinquedos que habitam o cotidiano das crianças nos séculos seguintes (MANSON, 2002). No Brasil, nos dias atuais, é possível encontrar a boneca de barro nas comunidades indígenas brasileiras como representantes de religiosidade, como afirma Kishimoto (2002). Tal modelo não se difundiu como recurso lúdico entre as crianças brasileiras.
Desde a Antiguidade, a boneca foi recebendo novas formas, ou seja, foi se traduzindo para ser cada vez mais manipulada pelas crianças. Novas técnicas de fabricação, revelando as sociotécnicas próprias das sociedades, permitiram adotar características que se tornaram mais agradáveis ao toque, por aceitarem tecidos, e mais facilmente inseridas nas atividades lúdicas. Assim, com a inserção de novos materiais foi possível emergir modelos mais parecidos com a figura humana. Materiais como ossos, marfim, terracota deram lugar a tecidos na confecção desses objetos, geralmente como produto da confecção de roupas, produzindo, com o tempo modelos com corpo em tecido e rosto de porcelana, ainda encontradas nos dias atuais.
As bonecas de pano que serviram às práticas lúdicas foram trazidas pelos negros e aqui assumiram novas feições, servindo como modelos para as traduções que surgiram. No estudo sobre o trabalho de designers do brinquedo no Brasil, Mefano (2005) também busca as origens deste objeto no país e encontra a boneca de pano como um dos objetos lúdicos pioneiros no processo de industrialização do brinquedo nacional. Ela aponta a hipótese de que foi a partir da intensa seriação desse produto que este se tornou tão popular, dando origens aos modelos posteriormente produzidos. Câmara Cascudo (1988) aponta a boneca de pano como um dos principais documentos de informação sobre o povo brasileiro. Aportando aqui como imigrante junto aos escravos, ela atuou como elemento constitutivo da cultura lúdica infantil, especialmente das crianças desprovidas de poder aquisitivo. As mulheres a fabricavam e ainda a fabricam para o uso das crianças da família, normalmente utilizando restos da produção de outros produtos, como lãs, tecidos, algodão, etc. É comum verificar, em nossos estudos exploratórios, que esta produção caseira se expande como uma atividade geradora de recurso para o sustento da família. No “Dicionário de Arte Sacra e & Técnicas Afro-Brasileiras” de Raul Lody (2003) a boneca aparece como importante função religiosa nas comunidades afro-brasileiras, devido à troca cultural estabelecida entre brasileiros e africanos. São descritos alguns modelos como a boneca de Iansã, boneca de Oxum, boneco de capoeira e as boneoras. Todos são modelos produzidos artesanalmente e utilizados em rituais de candomblés. Normalmente são encontradas em tecidos, na cor de pele negra, com uso de rendas para adornar, sendo algumas também confeccionadas com cabelos naturais. O movimento feito pela boneca nos faz refletir sobre seu traçado e suas funções sociais. Vimos que ela saiu dos ritos cerimoniais pagãos para os cristãos e depois veio atuar na veia da ludicidade. Além de ser um importante artefato de produção artesanal a boneca de pano também ganhou espaço na literatura brasileira. Esse fato fica presente principalmente quando pensamos na boneca Emília, personagem do Sítio do Pica-pau Amarelo de Monteiro Lobato.
Na obra de Lobato, a boneca Emília foi feita pelas mãos de Tia Nastácia para agradar Narizinho, neta de Dona Benta. Seu corpo é de pano, recheada de macela, seus olhos e sobrancelhas são feitos com linha de retrós preta (MONTEIRO LOBATO, 1972). Baseados na influência dessa boneca na cultura lúdica brasileira, esse protótipo é facilmente encontrado em todo o território brasileiro devido à produção artesã, além de alguns modelos produzidos pelas indústrias de brinquedos. Em meio a tantos modelos de boneca altamente industrializados e importados, a boneca Emília pode ser considerada um dos únicos modelos de boneca essencialmente brasileiro e presente em nossa cultura lúdica.

Roselne Santarosa de Sousa (Mestranda/UFSJ)
roselnesantarosa@gmail.com
Maria de Fátima A. de Queiroz e Melo
(Orientadora/BRINQUEDOTECA//LAPIP/ DPSIC/UFSJ)
queirozmaldos@uaivip.com.br

parte extraída do texto DESCOBRINDO O LUGAR A BONECA DE PANO NA CULTURA LÚDICA BRASILEIRA no sitio: http://abrapso.org.br/siteprincipal/images/Anais_XVENABRAPSO/247.%20descobrindo%20o%20lugar%20a%20boneca%20de%20pano%20na%20cultura%20l%DAdica%20brasileira.pdf

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