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Brinquedoteca Itinerante e Popular

sábado, 23 de julho de 2011

DESCOBRINDO O LUGAR A BONECA DE PANO NA CULTURA LÚDICA BRASILEIRA 3ª Parte





3. A boneca e a cultura lúdica de Gilles Brougère

Brougère (1998, 2000, 2004) define a cultura lúdica como a junção entre os ideais adultos, a linguagem, os materiais disponíveis, as imposições mercadológicas e a participação ativa da criança. Como um dos produtos e também actantes da cultura lúdica, o brinquedo é produzido pela interação entre as condições sociais, culturais e econômicas de cada cultura, em um intercâmbio que proporciona a construção da cultura lúdica. Esse objeto é então um vetor das brincadeiras, geralmente construído pelos adultos e feito segundo o que estes entendem como fundamental para as crianças.
Podemos dizer, com base em Brougère (1998, 2000, 2004), que a cultura lúdica é coletivamente construída, composta heterogeneamente por influências internas e externas. As internas surgem da apropriação da criança dos esquemas próprios a ela do contexto lúdico; já a externa advêm das imposições feitas pela mídia, pela indústria do brinquedo. Não se deve ausentar os materiais da construção da cultura lúdica, pois são eles que fornecem a instrumentalização para a manipulação da criança ao universo lúdico. Assim, materializados em objetos lúdicos, os chamados brinquedos, são introduzidos pela via adulta. Sendo socialmente construída, a cultura e os actantes que dela participam não são transmitidos de maneira passiva à criança, uma vez que essa participa impondo sua co-autoria, inscrevendo sua experiência.
Como um produto coletivo, fabricado vinculado à cultura geral, um brinquedo pode apresentar uma conotação diferenciada quando em contato com comunidades diversas. O que forma a cultura lúdica brasileira pode não fazer sentido para crianças nascidas em outros contextos, com diferenças culturais, econômicas. Voltamos às bonecas, descritas por Manson (2002), produzidas pelos gregos encontradas em escavações, fabricadas em terracota, enquanto os protótipos romanos eram confeccionados especialmente em osso, madeira ou marfim. Os modelos gregos de bonecas eram menos variados, talvez por serem produzidos com limitado material, enquanto as bonecas gregas possuíam modelos mais diversos e, comumente, eram exportadas para as crianças romanas. Ele discute que aquelas bonecas faziam sentido nas atividades lúdicas das crianças daquele momento histórico, mas caso as crianças contemporâneas tivessem contato com elas, certamente não reconheceriam tais objetos como réplicas de figuras femininas como são as bonecas, pois não se parecem com nenhuma versão atualmente conhecida.
As questões relacionadas ao gênero na construção da cultura lúdica também merecem destaque já que os brinquedos costumam se diferenciar entre meninos e meninas de uma mesma comunidade. Enquanto meninos preferem utilizar instrumentos que servem para reproduzir brincadeiras muitas vezes visualizadas em filmes e desenhos, as meninas tendem a reproduzir atividades presenciadas em seu cotidiano. Por isso, são facilmente vistas utilizando bonecas como se fossem suas filhas, pois presenciam tal atividade em seu contato com suas mães.
Atualmente a boneca em suas versões internacionais, frutos de uma indústria altamente tecnológica, influencia a cultura lúdica, concorrendo para deixar os modelos artesanais, feitos em materiais disponíveis regionalmente, em alguns casos, isolados do contexto infantil. Não obstante entendemos que a boneca de pano sobrevive, principalmente, em locais geográficos interioranos e pela hipótese da preferência das meninas de menos idade por esses brinquedos. Isso por que Brougère (2000) afirma que materiais maleáveis como a pelúcia permitem a exploração tátil e de outros sentidos que brinquedos produzidos em material como a madeira, por exemplo, não admitem. Nesse caso, um brinquedo de plástico ou madeira não evoca na criança o mesmo suporte afetivo que brinquedos feitos em pano, com enchimento acrílico, em veludo etc. Assim, podemos inferir que a cultura lúdica da criança é distinta desde seu nascimento até quando atinge uma faixa etária na qual as crianças iniciam seu interesse aos apelos do universo da moda, da beleza. É possível que as bonecas feitas em pano não encontrem o mesmo aceite entre meninas de sete aos doze anos, sendo essas talvez mais influenciadas por bonecas tipo Barbie ou bonecas-manequim como chamadas por Brougère (2000). Brougère (2000, p. 44-45) sugere considerar o brinquedo segundo algumas categorias que se distribuem em dois eixos de análise, sendo um em relação ao aspecto material do objeto (material, forma/desenho, cor, aspecto tátil, aspecto odorífico, ruído e produção de sons) e das significações de seu valor simbólico (representações de uma realidade, modificações induzidas nesta realidade, universo imaginário representado, representação isolada ou que pertence a um universo, impacto da dimensão funcional).
Focando, inicialmente, apenas ao primeiro eixo peguemos como exemplo a boneca de pano “Emília” presente no cotidiano das crianças brasileiras nas últimas décadas, especialmente após a nova roupagem dada ao Sítio do Picapau Amarelo por uma rede de televisão brasileira, onde a boneca serviu como modelo para fazer emergir entre artesãos e indústria de brinquedos modelos com cores mais fortes e variadas. Essa tradução normalmente é confeccionada de maneira artesanal com os seguintes materiais tecidos em algodão, malhas, lãs (representando o cabelo), enchimento acrílico, ou seja, materiais que proporcionam um produto com aspecto tátil macio e suave. As cores são geralmente diversificadas, mas seguindo o paradigma da versão original as cores se mesclam entre verde, vermelho, amarelo e laranja. Geralmente são protótipos inodoros e sem ruídos, mas que permitem maior expressão de comportamentos que evocam situações afetivas. Ainda em Brougère (2000), podemos afirmar que a dimensão material do brinquedo comporta a dimensão cultural de uma sociedade, e é através da interação da criança com o objeto lúdico que ela inicia sua socialização. O brinquedo serve como suporte afetivo das brincadeiras, outrora sendo confeccionado pelas mãos dos adultos próximos da criança, como aponta Porto (2008). Essa autora afirma que o processo de fabricação de brinquedos e especificamente da boneca servia como um momento de socialização entre adultos e crianças, em alguns casos, os objetos eram fabricados conjuntamente entre ambos, além disso, acrescenta-se que os pequenos iniciavam seu contato com os materiais de trabalho de pais e adultos de seu grupo social pela via do reaproveitamento dos restos materiais do trabalho. Em um tempo onde a ludicidade foi, como aponta Manson (2002), vista como opositora do trabalho, ou seja, carregada de futilidade, de frivolidade, a fabricação dos objetos lúdicos era feita apenas com a sobra do trabalho, pois os pequenos deveriam ser treinados para seguir o trabalho familiar (ARIÈS, 1981).
Refletindo sobre o segundo eixo de análise defendido por Brougère (2000), que se refere às representações, a criança manipula a boneca introduzindo significações próprias de sua experiência, como aspectos da feminilidade e da maternidade vivenciados por ela no contato com mulheres de seu meio. Assim, a menina costuma atuar com sua boneca reproduzindo as ações exercidas por ela e presenciadas em seu cotidiano. Dentre essas ações, trava conversas com suas bonecas, atribuindo nas mesmas atitudes humanas. Podemos tomar como exemplo a relação travada entre Narizinho e a Boneca Emília, na qual a garota decide utilizar a “pílula falante” para que sua boneca “ganhe vida”. Para a personagem, uma boneca falante serviria mais aos seus propósitos do que um objeto sem vida, já que a fala representa uma das principais características do humano. Dessa forma, podemos levantar a hipótese de que o sucesso da boneca Emília no universo infantil se deve a característica falante da boneca, pois a aparência não é similaridade ao humano como segue aquela observada nas bonecas manequim, mas tem como aproximação da realidade da criança a capacidade da comunicação.

Roselne Santarosa de Sousa (Mestranda/UFSJ)
roselnesantarosa@gmail.com
Maria de Fátima A. de Queiroz e Melo
(Orientadora/BRINQUEDOTECA//LAPIP/ DPSIC/UFSJ)
queirozmaldos@uaivip.com.br

parte extraída do texto DESCOBRINDO O LUGAR A BONECA DE PANO NA CULTURA LÚDICA BRASILEIRA no sitio: http://abrapso.org.br/siteprincipal/images/Anais_XVENABRAPSO/247.%20descobrino%20o%20lugar%20a%20boneca%20de%20pano%20na%20cultura%20l%DAdica%20brasileira.pdf

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